Já alguma vez passou pela experiência de «atolar» o seu automóvel, por exemplo na areia ou na lama? Lembra-se da estranheza de acelerar e não produzir qualquer efeito, exceto talvez o de agravar a situação? Para quem gosta de todo-o-terreno, o conceito de tração é muito familiar: é o que une a força ao movimento, o investimento de energia ao proveito, a dedicação de recursos ao retorno pretendido.
Também no mundo das emoções, de vez em quando, fica-nos amputada a capacidade de produzir resultados. Não por falta de força, não por falta de esforço, mas por falta de tração. Usando uma metáfora de George Pransky – autor do brilhante «The Relationship Handbook» – é como quando o sistema digestivo está perturbado, e não consegue absorver corretamente os nutrientes dos alimentos. Aí, uma unidade de alimento deixa de significar uma unidade de nutrição.
Do ponto de vista emocional, todos já tivemos este «défice de tração» num momento ou outro: estamos lá fisicamente, na festa, tudo a acontecer, mesmo agora, como tanto tínhamos antecipado, à nossa volta tudo corresponde ao imaginado, mas cá por dentro, onde tudo devia também corresponder, não há a intensidade suposta. É como se não estivéssemos mesmo lá. Como se cada unidade de experiência nos preenchesse menos, nos alimentasse menos: num processo de abstração, de dissociação.
Esta falta de tração da experiência em termos de retorno na sensação interna, quando rotineira, pode trazer alguns distúrbios, tipicamente expressos em esquemas viciados, como comer em demasia, alcoolismo ou drogas. Ou meramente numa contínua necessidade de fazer acontecer muitas coisas «cá fora», para fazer abanar o «cá por dentro». Desportos radicais de intensa adrenalina cabem facilmente nesta categoria. Sucesso profissional também. Num dia de muito stress, é fácil perdermo-nos em grandes doses de intensa atividade, e chegar ao final do dia a pensar: «não fiz nada do que queria».
Quando não há tração, a força do motor é irrelevante. Por outro lado, carregar no acelerador pode ser atraente, porque até costuma resultar – talvez não esteja a carregar a fundo o suficiente? Vem o vício. Come-se mais uma bolacha, e outra e outra, e consulta-se o e-mail repetidamente à procura de vitórias fáceis que aliviem, e nunca resolve – a raiz está nos temas que precisam de decisões difíceis, não em maior quantidade de execução. Paul McKenna, especialista de distúrbios de obesidade, recomenda um post-it na porta do frigorífico: «estou mesmo com fome, ou gostaria apenas de mudar o meu estado emocional?».
É quando nos perdemos numa edificação abstrata do que seria suposto ser a nossa vida, que começamos a digerir deficientemente o momento presente, alimentando a esperança de que um dia, quando tudo estiver como deve ser, todos os momentos serão fantásticos. Todo o radar fica então consumido pelo «projeto», pelas «instruções», pela monitorização de progresso…
Para sair dessa eventual armadilha, há que largar. Há que voltar a ampliar o canal sensorial, respirar fundo, sentir a pele exposta ao privilégio de existir e absorver o que está aí mesmo à mão de semear, agora. Por fora, nada fica muito diferente: ninguém se vai retirar para um mosteiro e virar budista. Não: a roupa continua a precisar de ser lavada, amanhã o despertador toca como sempre, e a corrida à melhoria e ao desafio mantém-se. Simplesmente os pneus estão mais adequados. Corremos alimentados pelo gozo de jogar com entusiasmo, e por valores de contributo e aprendizagem e vontade de sorver vida – não para cobrir défices ilusórios de insuficiência.
Acima de tudo, se lhe falta tração, alivie um pouco o acelerador…